sexta-feira, 22 de junho de 2012

Um ensaio sobre Lúcifer (parte 3)


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Algumas tribos – sobretudo algoquinos e iroqueses – distinguem entre o demiurgo e o Espírito Supremo; tal demiurgo costuma ter papel que lida com o burlesco, ou inclusive com o luciferiano. Tal conceito de Poder criador e do dispensador primitivo das artes, dista muito de ser exclusivo dos peles-vermelhas, como por exemplo, as mitologias do mundo antigo, as travessuras dos titãs correm junto com as dos deuses. Em linguagem bíblica dirá não haver paraíso terreno sem serpente e sem este não há queda nem drama humano, nem reconciliação alguma com o Céu. Como a criação, apesar de tudo, é algo afastado de Deus, necessariamente tem de ter nela a tendência deífuga, de maneira que a criação se pode considerar em dois aspectos, divino uno e demiúrgico ou luciferino o outro (Joseph Campbell).

As coisas são coagulações da Substância divina, enquanto a Substância – e isto é crucial – não se vê afetada no mais mínimo por esses acidentes. A Substância não é as coisas, mas as coisas são Substância e isso em virtude da existência e qualidades; esse é o sentido profundo do animismo polisintético dos peles-vermelhas e é essa consciência aguçada da homogeneidade do mundo fenoménico explica o naturalismo espiritual e também o seu negativo a separar-se da natureza e entrar na civilização forjada de artifícios e servidores e no seu seio leva os germes da petrificação e da corrupção. Para o índio pele-vermelha, como para os povos do extremo oriente, o humano se encontra na natureza e não fora dela.

Nietzsche comparou desfavoravelmente o mito bíblico da Queda no Jardim, com o mito trágico e heróico de Prometeo, considerando-o tipicamente grego. Toda a mitologia da Queda com seu conceito de desobediência ao poder superior, as mentiras da serpente, a sedução, cobiça e concupiscência – para resumir, a constelação chamada por ele de «afectos femininos» – representava para Nietzsche a interpretação de valores humanos somente podiam chamar-se desprezíveis e vis. Enquanto na cruel impiedade do Titã grego – representa a valente conquista pelo humano da sua própria talha cultural e espiritual, desafiando aos zelosos deuses (verdadeiramente) maléficos.
Desde os dias de Nietzsche aprendemos sobre o roubo do fogo não é motivo especificamente indo-europeu; nem a ideia da queda especificamente bíblica.

Falando em geral não há um só símbolo imposto aos satanistas; são livres de criar seus próprios símbolos para representar as suas crenças pessoais de acordo das necessidades estéticas e aliás alguns confeccionam-nos assim. No entanto, há um símbolo a representar fortemente a essência do satanismo e o qual é adoptado pela Igreja de Satã e algumas variações são usadas por outras organizações fingindo ou pretendendo ser de natureza satánica, como por exemplo o Templo de Set.

Os vencedores escrevem a História – à sua maneira. Não admira, os relatos tradicionais das origens do cristianismo, primeiro definissem termos (apelidando-se a si próprios de ‘ortodoxos’ e aos seus opositores de ‘heréticos’); depois passavam a demonstrar – pelo menos para sua própria satisfação – o seu triunfo era historicamente inevitável ou, pelo menos em termos religiosos, “guiado pelo Espírito Santo”. Mas a descoberta (dos evangelhos gnósticos) em Nag Hammadi reabre questões fundamentais (Elaine Pagels, 1979). Não há dúvida, a História é a “verdade” dos vencedores. Segundo Mauss, quando a religião é suprimida, os sacerdotes desconsiderados tornam-se feiticeiros para os membros da nova igreja. É assim os Malaios ou os xamanes muçulmanos consideram o pawang ou a paja, na realidade são antigos sacerdotes.

A história e a antropologia mostram a religião como heresia ou feitiçaria, como manipulação espúria de bens de salvação e ao sabor do poder político. A heresia era o pecado castigado com a morte. A maioria das supostas bruxas foram condenadas pela Inquisição da Igreja católica, porque a maior parte viviam sob sua jurisdição. Mas os protestantes, coincidiam com os católicos em muito poucas coisas, foram mesmo assim uns ávidos caçadores de bruxas. Nos países totalmente católicos (como Itália, Espanha, Irlanda e Portugal) tinha muito poucos focos onde se deram processos por bruxaria; em Espanha, praticamente nenhum. Parece que a mania era menos evidente ali onde a disciplina eclesiástica, católica ou protestante, era forte, autoritária, e mais evidente nas regiões onde as questões religiosas se achavam num estado de caos. Servindo a religião de veículo simbólico dessa política e de poder e o mecanismo de resistência cultural.

O sincretismo religioso costuma ser negado e criticado pode ser considerado mecanismo de resistência, a reinvenção de significados e reflexo da circularidade entre culturas. O sincretismo neocultural nas sociedades ocidentais é evidente e vigoroso, na forma como se assume o tema. Inclusive os mais curiosos, estão dispostos em investir tempo livre e dinheiro em quantidades significativas (como investimento emocional) para se aproximar tipos de conhecimento ancestral parecem ter perdido interesse pela influência e dominação das “instituições vorazes”, as ideologias de controlo do status quo das sociedades modernas. Em verdade estas quiseram eliminá-las. Assim, estas formas culturais foram “oficialmente” extintas e socialmente tenderam a desvalorizar-se e a desconhecer-se. Foram culturalmente estigmatizadas. Incidiu a constituição e consolidação dos estados nacionais, desde finais dos séculos XIX e XX. O sincretismo, ao contrário de muitos considerarem, não é incompatível com a tradição religiosa, primeiro porque todas as religiões são sincréticas e também porque o sincretismo reflecte a capacidade de relacionar coisas diferentes, como os vários povos aprenderam a fazer e ensinaram aos povos entre si.

Por outro lado, os académicos foram autorizados a traduzir a Bíblia, pelo Rei Jaime I para o inglês hodierno, mas não foram usados textos originais hebraicos, mas traduziram outras versões... em grande parte através de S. Jerónimo no século IV que tinha traduzido mal a metáfora do hebraico: «a Estrela do Dia, filho do Amanhecer», como “Lúcifer” e durante séculos foi consumada uma metamorfose. Lúcifer, a estrela matutina, tornou-se num anjo desobediente, expulso do céu para reger eternamente o Inferno. Teólogos, escritores e poetas teceram o mito com a doutrina do Anjo Caído e na tradição Cristã popular, Lúcifer é semelhante a Satanás, o Diabo, e – ironicamente –, também o Príncipe das Trevas. Assim, “Lúcifer” é nada mais é do nome latino antigo para a estrela matutina, o portador da luz. Isto pode ter causado confusão nos católicos identificando Cristo como a estrela da manhã, termo usado em muitos dos seus sermões.

O famoso pacto com o Diabo é o centro da tradição histórica (pelo menos até há bem pouco tempo) e forma a base do moderno revivalismo satânico. Este é diferente da Bruxaria histórica: colocamos aqui alguns axiomas d a falta de semelhanças entre isto e a Bruxaria possa ficar claro, para mais é marginal e poder-se-ia dizer, é um pseudo-culto, real e perigoso. «Satanismo é centrado no egoísmo e na filosofia brutal. Baseia-se na crença que os seres humanos são inerentemente egoístas e criaturas violentas». Estas não são as palavras dos seus oponentes mas a introdução para o manifesto de LaVey, A Bíblia Satânica (Burton Wolfe, 1969).

La Vey acreditou celebrar os pecados católicos como virtudes e formulou declarações satânicas bem como a aproximação da sua quinta-essência. Mesmo assim, o satanismo é um fenómeno cristão e como tal é o problema é deles e não nosso[1]. O ocultista Eliphas Lévi no seu livro[2] explica a primeira condição para o sucesso desta prática (Magia Negra/Missa Negra) era estarmos preparados para profanar o culto no qual acerditássemos. Portanto, fica-se esclarecido uma coisa é a base da outra. Além disso os insistentes persistentes [escritores sensacionalistas] associam a Bruxaria com Missa Negra e outras coisas, não conseguem compreender que as Bruxas são pagãs, ou elas celebram as Missas Negras; mas, em nome da lógica e do bom-senso, não podem afirmar as duas coisas ao mesmo tempo (Gardner, 1959).

Demonstra, o satanismo consciente ou não, caracteriza-se sempre por inversão da ordem normal: adopta fatalmente as doutrinas ortodoxas e inverte à partida certos símbolos ou certas fórmulas; em muitos casos, mais não são do que práticas religiosas realizadas ao contrário do qual os pagãos são vítimas desta aberração sem sentido numa matiz classificada de “pseudo-religião” porque nem sequer se encontra na “contra-religião”: A heresia pode aparecer como uma contra-religião, mas inverter uma religião não é por ser imaginalmente provida de senso e alguma sustentabilidade.

Em Inglaterra, por volta de 1646, um escritor mostrava-se clarividente, ao afirmar a sua crença era inseparável da de Deus e abandonada esta, rapidamente aquela seria abandonada[3]. A palavra não tem significado a não ser em relação à visão cristã do universo na Europa medieval. As religiões pagãs existentes, como foram suprimidos pelo catolicismo, os seus Deuses e Deusas tornaram-se demónios. Por aqui dá para ver a posição e visão dogmática que as religiões monoteístas possuem.

As técnicas da magia prática usadas na Igreja Satânica, quanto muito, são retiradas dos padrões de ensino de Crowley e da OTO. Também parece seguir o pensamento de Austin Osman Spare, pai da Magia do Caos. Ele [LaVey] não se opõe aos sacrifícios humanos, mesmo sendo esse simbólico se o visado morrer, melhor.

Pouco há de ligação ao satanismo de LaVey com qualquer Bruxaria tradicional europeia ou com a Bruxaria neopagã. O aspecto mais notável e pior do culto de LaVey é a sua trivialização do mal. Anunciando as virtudes do ‘diabo’ em termos de cobiça e luxúria pessoal, LaVey ignora aqueles que tiveram que sofrer os verdadeiros males do napalm, violação, campos de extermínio e mutilações. Próximo desta realidade grosseira – e o verdadeiro satanismo – é o culto de Charles Manson. Sem a hipocrisia das velas e cálices, a “religião” de Manson é o verdadeiro credo de tortura e morte, presidiu acima do homem que se chamou ‘o Diabo, Satã’ (Vicent Bugliosi, 1974). Na hora dos múltiplos assassinatos perpetrados na casa de Sharon Tate em 1969, Charlie seguidor de Tex anuncia: «Eu sou o Diabo e estou aqui para fazer o negócio do Diabo». Manson virtualmente analfabeto retirou as ideias dos filmes, revistas e conversas. Nalgum misticismo[4], parece acreditar em Satã e Cristo, bem e mal, seria unificado, talvez na pessoa do próprio Charlie. Ou, como nos diz Pessoa, «no absoluto não há nem bem nem mal». Mas Manson não tem mesmo nada a ver com Bruxaria mas sim com a Igreja de Presbiteriana. O imaginário popular liga a família de Manson com Bruxaria é simplesmente ignorante. As Bruxas modernas não adoram ou cultuam ou mesmo acreditam no princípio do mal (J. Russell, 1980). É preciso frisar existir diferença entre loucura e insanidade mental com realidade das coisas: como também se analisarmos as coisas friamente quem povoam as cadeias por crimes, maioritariamente são cristãos e raramente sucedem crimes de cunho – exacerbadamente e sem fundamento, diga-se – ocultistas.

O uso de símbolos satânicos, inversões deliberadas do cristianismo ou profanação dos mesmos. LaVey fez a imitação ridícula de Crowley[5] e por isso, os seus “seguidores” não sabem do que estão a fazer, geralmente são jovens perdidos, egocêntricos ou contestatários e geralmente tiveram uma educação desfavorecida, geralmente inculta e possuidora de cultura sub-urbana e marginal. É também surpreendente a Bíblia satânica retirou da magia enoquiana – mais de cem páginas, da Aurora Dourada fornecendo a tradução à sua maneira. Por isso, o satanismo como culto não existiu até este senhor aparecer existindo apenas nas mentes ímpias perversas da Inquisição e nas concepções literárias do séc. XIX criando estereótipos. Desta forma, com outras roupas não se inserem no mundo pagão e se umas são aceitáveis outras não e esta concerteza é uma delas[6]. Desta forma os neopagãos demarcam-se do satanismo, entre outras razões, não ser pagã na essência e ser católica e esta ser “arma” para dar jeito à Igreja lutar contra a Gnosis e impor os seus dogmas e mitos através do medo e repressão.



[1] Assim se passa com a igreja pois não são alheios a práticas pouco idóneas: «Juiz mexicano expediu uma ordem de prisão a um padre por conduzir um extravagante ritual de exorcismo deixando várias pessoas lesionadas. O religioso Francisco Fuentes foi acusado de causar lesões numa jovem, queimada com a cera de círio para conjurar uma suposta possessão diabólica do seu corpo» ( La Opinión Digital , 2000).
[2] Dogma e Ritual
[3] Citado por Robert Muchembled.
[4] Do gr. mystikós, do lat. Mysticu1. Disposição para crer no sobrenatural, não tem base na realidade. 2. Crença religiosa ou filosófica, admite comunicação oculta entre o homem e a divindade. 3. A Doutrina da Bruxaria ibérica não tem familiaridade alguma com o misticismo e nem abona a prática.
[5] Crowley não era satanista nem pagão, mas somente mago cerimonial judaico-cristão com laivos incisivos de neopaganismo. Crowley era muito eclético, podemos listar Magia Cerimonial da Golden Dawn, Cabala, Grimórios medievais, Egipto e Grécia Antiga e Yoga. Crowley deu ênfase a elementos egípcios, inferiorizou os elementos cristãos e adicionou muitas outras coisas. A sua demonologia de facto não revela em nada de satânico como muitos pretendem para justificar o seu satanismo.
[6] Ver Donald Tyson, Ritual Magic.